sexta-feira, 6 de março de 2020

GILLES LIPOVETSKY - Sobre o presente e o valor da liberdade



Há alguns anos atrás, em alto mar, num fantástico evento de observação de baleias, estava a postos com câmera fotográfica na mão.

Havia uma baleia perto da embarcação e estávamos aguardando que ela emergisse. Não sabemos de qual lado ela pode subir à superfície da água. Todos em silêncio atentos observando em ângulo de 360o.

Eis que a baleia surge como foguete e faz um belo salto - sorte nossa!

Ninguém conseguiu fazer a foto do salto. Não deu tempo de olhar e fotografá-la na direção dela. São segundos que não permitem fazer duas coisas ao mesmo tempo, sem sacrificar a inteireza da presença em um deles.

Diria que a inteireza no momento presente não permite a concomitância em mais de um presente.

Fui perguntar às pessoas se alguém tinha conseguido registrar o momento. Ninguém. Até que jovem senhora francesa respondeu que sim, havia registrado o momento. Pedi que me passasse a fotografia tão desejada. Foi então que ela apontou para testa e disse algo como "registrei aqui".

Essa situação me parou no tempo. Senti-me como que num deslocamento naquele espaço e tempo. Como se todo o sentido de estar ali experienciando a vida tivesse seus significados totalmente remexidos em poucos segundos.

Pensei. É. Ela tem razão. Talvez, tenha sido quem mais experimentou o encanto do momento, despreocupada com fotos e filmagens que pudessem reduzir sua atenção.

E, hoje, assistindo a uma entrevista do filósofo Gilles Lipovetsky, curiosamente francês, me deparo com afirmações que me remeteram exatamente àquele momento no barco há quase 10 anos.

Seguem alguns trechos da entrevista de Lipovetsky, entrando em contato com o seu pensamento.

"O passado não me interessa. Nada, absolutamente nada. Eu sou assim. Não sou homem do passado. Dizem-me que é preciso ler sobre. Estou-me nas tintas. Não leio isso.
Nunca tiro fotografias, nunca. Ando pelo mundo inteiro. Nunca tiro fotografias. Não me interessa. Fica na cabeça. Não me emociono com as coisas do passado.
Eu não sei nada disso. Nem sequer sei tirar fotografias. Porque aquilo que me interessa é... Aliás, isto é muito filosófico. 
Os pensadores gregos diziam que o único tempo que existe é o presente, porque o passado já passou, bem... já passou.
E o futuro... se calhar, já estaremos mortos.
O importante é o presente. Acho que esta é a verdade. 

Sou cético sobre o poder da Filosofia. Diz-se muito que a Filosofia muda a vida. Não acredito em nada disso.
A Filosofia não mudou a minha vida.
O que muda a minha vida são os encontros com as pessoas, as experiências que tenho, a minha profissão... mas, os livros?!
Não é isso que nos dá a felicidade. Há a felicidade de trabalhar, claro, mas podia sempre fazer outra coisa.
Não é o pensamento filosófico que transforma a minha existência. É o trabalho, o trabalho. Porque eu gosto de refletir. É o prazer de compreender. Mas não acredito que a filosofia ajude a viver.
Não acredito em nada disso. Nada. Nunca acreditei nisso.
Sou filósofo porque me interessa. Gosto de compreender. Mas é tudo. Não partilho a grande fé filosófica que vem da Filosofia grega, até Spinosa, que pelo pensamento se transforma a existência. Não.
Aliás, conheço alguns filósofos neste mundo e não acho que vivam melhor a outros homens. Vivem como toda gente. Pensam de forma diferente, isto sim, mas pensar não é viver.

(...)

À escala de uma racionalidade pura, não necessitamos de 800 perfumes por ano.
É um desperdício, como se diria antigamente, um desperdício haver 800 perfumes. Tem toda razão. Mas 95% desses 800 perfumes desaparecem ao fim de um ano ou dois. 
Fala-se em liberdade e diversidade, mas há, também, velocidade e efemeridade. As coisas desaparecem.
É o que designamos por obsolência dos produtos. Não, claro que não.
O capitalismo não tem uma estratégia de racionalidade global. A sua única racionalidade é a de aumentar o volume de negócios, aumentar a rentabilidade.
Um raciomalista puro e duro dirá que tudo isto é horrível. Se se levar em conta a condição humana e se se disser: "bem, a racionalidade é apenas uma parte da condição humana e há uma outra dimensão. E essa dimensão, o quê é?" É a dimensão estética, no sentido grego do termo, a vida das sensações, a vida sensível.

A vida sensível não é racional. Aí não há dúvida. 
Bem, talvez, a economia não seja racional porque visa essa parte da vida humana que não é racional, que é a dimensão estética, a "aesthesis" dos gregos.
A vida sensível não é racional.
A publicidade tem um papel inegável sobre o consumo. O comércio, claro.
Vemos iogurtes de uma marca qualquer, e compramis iogurtes dessa marca ao invés de uma outra. Há uma influência inegável da publicidade. De acordo, não o contesto.
Mas o que me parece injusto é reduzir o homem ao consumidor. É importante, mas não é só isso. A vida não é só consumo.
Não é a publicidade que o leva a escolher a namorada, que o leva a casar-se ou a ter filhos. A publicidade não tem nada a ver com isso. Nada.
Em outras palavras, a publicidade tem poder sobre o quê? Sobre as coisas não essenciais. 
Comprae um iogurte de uma marca em vez de outra, para os filósofos, talvez seja um drama, mas, na vida, o que é que representa? Nada. Talvez um ataque à liberdade.
Mas, como dizia Descartes, ao grau mais baixo da liberdade. 
A verdadeira liberdade é o que se faz da vida: a escolha de uma profissão, o casamento ou não, o divórcio, o fato de ter filhos, de trabalhar... Isto, sim, é a luberdade humana. Mudar o governo, mas não o consumo.
Sobre os aspectos que não são consumo, a publicidade vale zero. "

("O Valor da Liberdade - 1o. Episódio (Gilles Lipovetsky)", Canal YouTube FFMSPT, 24/02/15)

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